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Valle, Silvio
Amâncio Filho, Antenor
A Constituição de 1988, em seu Artigo 5º e incisos, contempla direitos e garantias individuais, explicitados em extensa relação, revelando a intenção dos constituintes em possibilitar ao indivíduo um viver (e um conviver) mais equânime, fraterno e justo, entendendo que preservar e proteger direitos e garantias do homem é condição fundamental para a construção de uma sociedade que almeja o bem estar comum.
No entanto, decorridos já alguns anos da promulgação da Constituição, observa-se ainda hoje um certo descompasso entre o que preconiza a Carta Magna e a legislação ordinária que deveria dar suporte regulamentar à aplicação e cumprimento dos preceitos estabelecidos. Exemplo marcante dessa defasagem entre a concepção e a efetiva execução/proteção desses direitos e garantias é o atual Código Penal Brasileiro. Em vigor há quase cinquenta anos, seu texto não inclui o cometimento de certos atos que, na percepção de parcela significativa da comunidade científica, podem ser configurados como ilícitos tecnológicos.
No tocante ao acesso e à utilização de novas tecnologias, essa lacuna da lei em relação a mecanismos de controle/regulação tem proporcionado o surgimento de situações que favorecem o não respeito às garantias e aos direitos individuais constitucionalmente expressos. Tome-se como exemplo o que se observa em relação à informática, tecnologia que, às vezes de modo sub-reptício, vem enfaticamente se fazendo presente no cotidiano das pessoas, sem que elas se apercebam do vínculo de dependência que vem sendo criado e de que sua privacidade pode ser facilmente invadida. Em muitos casos, a aplicação da informática se constitui mesmo em uma forma velada de controle da vida particular das pessoas, sem seu conhecimento ou consentimento prévios.
Há fatos expressivos a respeito do uso direcionado e impositivo da informática na vida do cidadão, com a literatura existente sobre a matéria demonstrando que essa "intromissão" vem sendo abordada com alguma frequência, de maneira crítica, por especialistas que trabalham com essa tecnologia.
A tecnologia da informação, a cada dia mais sofisticada, ao ser utilizada pela rede bancária disponibiliza para essa rede dados econômicos e financeiros que tornam possível delinear o perfil e a capacidade de consumo do indivíduo, permitindo estabelecer estratégias diretas ou subliminares de cooptação.
A informática também é utilizada pelos setores de organizações empresariais responsáveis pela seleção, contratação e controle de pessoal. Esses órgãos, sob as mais variadas alegações, acumulam significativa quantidade de dados particulares e funcionais do indivíduo, incluindo, em alguns casos, suas opções religiosa e político-partidária. Esse acervo de informações muitas vezes cria condições para que algumas empresas explorem seus cadastros de pessoal enquanto um negócio, fazendo surgir e incentivando um mercado de "bancos de informações e de interesses" de indivíduos, classificados segundo atividade profissional, sexo, faixa etária e nível salarial.
É comum, também, as pessoas receberem em sua residência, por "mala direta", ofertas para aquisição dos mais variados produtos e serviços, como enciclopédias, roupas, artigos de perfumaria, livros, revistas, planos de saúde. Raramente o "cliente em potencial" se interroga sobre como alguns de seus dados pessoais (como nome e endereço) foram obtidos, possibilitando às empresas enviarem até ele material de propaganda. A mesma tecnologia permite que órgãos de comunicação, baseados em análises estatísticas e movidos por interesses comerciais, direcionem suas programações no sentido de sensibilizar determinado tipo de público (ou clientela) para o consumo de dado produto. Isto sem mencionar o poder de interferência da mídia na "industrialização" da cultura.
A informática, ademais, detém meios para desenvolver um amplo e sequencial controle sobre o cidadão. A elaboração de um sistema de informações integradas pode permitir acompanhar a trajetória do indivíduo do nascimento à morte, sendo bastante simples concentrar, em um banco de dados, informações exigidas às pessoas que vivem em sociedade. Ao nascer, a criança é cadastrada no Cartório de Registro Civil e no Instituto Nacional de Seguro Social, para que os pais tenham direito ao auxílio natalidade; no período de escolarização, múltiplas informações são coletadas pela rede de ensino; a partir de determinada idade, o indivíduo vê-se compelido a possuir documentos como carteiras de identidade, de motorista, de trabalho, título de eleitor, certificado de alistamento militar, além de precisar identificar-se junto à Receita Federal, aos órgãos de classe e assim por diante. Ao falecer, extraído o Atestado de Óbito, fecha-se o círculo da trajetória cumprida pelo cidadão, com as informações coletadas e reunidas ao longo do tempo se constituindo em um conjunto de dados decifradores da sua existência.
No âmbito da biotecnologia, a situação se apresenta ainda mais complexa, não só pelo caráter particular das impressões biológicas mas porque, na maioria das vezes, estão envolvidos interesses econômicos que movimentam grandes somas de recursos financeiros. Apenas no Brasil, a indústria de identificação de paternidade por DNA fatura por ano acima de cinco milhões de reais. Um outro campo de aplicação em ascensão é a área criminal, pois a técnica contribui para elucidar crimes, identificando seus autores. Os Estados Unidos, país que mais investe em biotecnologia em todo o mundo, aplicam de um a cinco por cento do orçamento destinado à biotecnologia em estudos de segurança, com os investimentos em bioética atingindo um total de dez por cento dos recursos orçamentários.
Tópico de apreensão diz respeito aos estudos de eugenia porque, com o potencial da tecnologia do DNA recombinante, é possível fazer seleção de pessoas e de padrões, permitindo, por exemplo, que se identifique que parte do genoma transmite a cor dos olhos e outras características do indivíduo, tornando possível suprimir ou acrescentar características pessoais. Nos Estados Unidos, uma preocupação é com o uso dessa tecnologia por companhias de seguro, visando identificar o grau de probabilidade de um indivíduo vir a ter determinada doença. As companhias seguradoras estariam vendo nesse tipo de tecnologia uma possibilidade efetiva para aumentar lucros, mediante a fixação de prêmios de apólice diferenciados, a partir dos resultados de um screen genético. O exame de uma simples gota de sangue permitiria estabelecer, por exemplo, a probabilidade do indivíduo vir a ter um enfarto, o que ocasionaria um aumento do custo do seguro de vida dessa pessoa ou, até, a inclusão de cláusula estipulando uma idade acima da qual o seguro não é mais renovado.
Nessa linha, esse tipo de teste poderia ser também levado à prática em outras áreas, como na seleção de pessoal para uma empresa ou para identificar crianças superdotadas. No primeiro caso, há que se pensar em empresas que passariam a selecionar candidatos mediante screen genético prévio para trabalhar, por exemplo, em um setor considerado de risco alergênico. Com o exame indicando propensão do candidato à alergia, sua contratação estaria descartada. No segundo, merece ser refletido o impacto de tal medida na formação do indivíduo. Um screen genético poderia identificar os chamados superdotados não mais pelos critérios de testes de quociente de inteligência (QI) e sim por testes genéticos, que têm uma base científica e uma confiabilidade grandes. Isso permitiria agrupar os selecionados com aptidões e habilidades similares, com o objetivo de desenvolverem suas capacidades para impulsionar dado campo do conhecimento, o que poderia representar o exercício da manipulação do potencial dessas pessoas.
O célere avanço da Engenharia Genética e do processo de mapeamento do genoma humano exige ampla e profunda reflexão sobre questões de ordem ética, em especial no tocante à divulgação de informações confidenciais a respeito dos indivíduos, obtidas pela aplicação dessas tecnologias, sem o prévio consentimento do cidadão. Essa preocupação vem mobilizando especialistas da área em todo o mundo, no sentido de pensar implicações éticas que possam decorrer do uso inapropriado da Engenharia Genética e da tecnologia do DNA recombinante. O estudo dessas demandas éticas e de seu impacto social foi reunido num campo recente de produção de conhecimento, denominado de Bioética que, no dizer de V. R. Potter, pode ser definida como "o conjunto de reflexões éticas e morais relativas às conseqüências práticas da Medicina e da Biologia".
Enquanto a ética médica clássica trata da relação médico/paciente e envolve questões como o teste de novas drogas em seres humanos, a Bioética, como vertente mais nova da ética em Biologia, é centrada em questões da Biotecnologia. A partir da década de '70, quando o processo de conhecimento do mecanismo genético foi acelerado, a área científica pôde perceber o imenso potencial das ferramentas biotecnológicas, que permitem testar cruzamentos entre espécies diferentes e inocular o gene de uma bactéria em um animal mais complexo e vice-versa. A ciência passou a dominar um instrumental científico que trabalha com a base da vida, com a base de transmissão dos caracteres individuais, que é o DNA.
Esse problema pode ser melhor visualizado quando se observam estudiosos da bioética mais liberais com relação ao uso da Engenharia Genética do muitos cientistas que, em diversos momentos, consideram a necessidade de uma melhor avaliação dos impactos tecnológicos. Certamente com investimentos em bioética é possível condicionar a sociedade e familiarizá-la com a tecnologia; em contrapartida, em biossegurança, além dos elevados custos das pesquisas, existe o risco de evidenciar falhas da tecnologia.
A velocidade na incorporação de conhecimento tecnológico em linguagem acessível é de fundamental importância para legisladores e juristas e, em especial, para a sociedade. Por exemplo, a técnica de PCR (Polymerase Chain Reaction), apesar de recente, já está sendo substituída pela RCA (Rolling Circle Amplification), que utiliza vírus para fazer a cópia do DNA com uma velocidade muito superior e em baixas temperaturas.
Alguns dos problemas já identificados no tocante à biotecnologia foram equacionados pela Lei de Biossegurança (Lei 8.974/95). Aspecto relevante dessa lei é que a mesma protege a saúde dos homens, dos animais, dos vegetais e do meio ambiente, sem hierarquizar a proteção - Ela regulamenta todos os procedimentos laboratoriais que envolvem qualquer tipo de DNA, seja humano, animal, vegetal, transgênico e mesmo quimeroplástico. Qualquer instituição domiciliada no Brasil e que utilize técnicas de Engenharia Genética deve possuir o Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB), por força dessa lei.
Além disso, o Decreto de regulamentação nº 1.752/95 dá competência à Comissão Técnica Nacional de Biotecnologia para estabelecer o Código de Ética de Manipulação Genética e a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, ligado ao Ministério da Saúde, estabelece que os procedimentos éticos das pesquisas envolvendo seres humanos, e o faz de maneira participativa, pois prevê a criação de Comissões de ética em Pesquisa com participação de leigos e de membros não pertencentes à instituição proponente da pesquisa.
Certamente essas normas não atendem às necessidades do direito penal, mas sua aplicação seguramente será muito útil na busca de subsídios para fundamentar uma futura jurisprudência ou até mesmo para uma legislação sobre o tema.
Entretanto, mesmo com todas as iniciativas já realizadas em biossegurança para controlar os efeitos negativos da biotecnicociência, é possível observar que os avanços da Engenharia Genética têm sido acompanhados por uma emergente sociologia eugênica. Portanto, existe a necessidade de investimentos em nossas universidades e instituições de ciência e tecnologia para estabelecer uma competência nacional em biotecnologia, impedindo que a população se torne refém de um ditadura genética comandada por grandes conglomerados transnacionais.
Devido ao enorme potencial das biotecnologias e da sua possível e previsível associação com as ciências da computação no desenvolvimento de biochips, existirá a necessidade constante da sociedade cobrar pelos diversos mecanismos existentes, em especial nos campos legislativo e jurídico, uma aplicação que seja técnica e economicamente sustentável mas, principalmente, socialmente adequada.
Frente a esse conjunto de questionamentos, o debate sobre essas e outras novas tecnologias é da maior importância e pertinência, face à inexistência de uma legislação específica que regulamente a matéria, colocando em risco direitos individuais. Torna-se urgente debater, em todas as instâncias da sociedade, com destaque para aquelas mais diretamente ligadas ao assunto, as questões que emergem ou possam emergir de sua aplicação, visando preservar e garantir a identidade e a privacidade do cidadão.
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