Você está em: Home >>>> Profissionais de Saúde >>>> Revista Médica >>>> Número 33 - Volumes 1 a 4 >>>> Síndrome Hepatopulmonar
Paulo de Tarso Aparecida Pinto
Uma mulher de 67 anos, portadora de cirrose por vírus C, com história de dispnéia aos pequenos esforços e platipnéia, sem evidências de doenças cardíaca ou pulmonar primária, foi avaliada após admissão por episódio transitório de encefalopatia hepática. O diagnóstico da síndrome hepaopulmonar foi estabelecido numa paciente com doença hepática crônica, pela presença de alargamento importante do gradiente alvéolo-arterial e evidência de "shunt" intrapulmonar no ecodopplercardiograma transtorácico contrastado ( bolhas).
Unitermos: síndrome hepatopulmonar
A 67 year old, female, patient having virus C hepatic cirrhosis, with dyspnea during modest exertion and platipnea, without evidence of primary cardiopulmonary disease, was evaluated after beeing admited because of a transitory episode of hepatic encephalophathy.
The diagnosis of hepatopulmonary syndrome was established in a patient with chronic hepatic disease by the presence of major widening of the alveolar-arterial gradient and evidence of intrapulmonary shunt by contrast transthoracic ecodopplercardiogram.
Key words: hepatopulmonary syndrome; case report
Síndrome Hepatopulmonar (SHP) é uma vasculopatia pulmonar que se desenvolve num subgrupo de pacientes com doença hepática e hipertensão portal.
Descreveremos, a seguir, o caso de uma paciente cirrótica com dispnéia aos pequenos esforços e platipnéia, com anormalidade importante na troca gasosa ao nível alveolar, sem evidência de doença pulmonar ou cardíaca.
Trata-se de paciente de 67 anos, sexo feminino, branca, casada, do lar, natural e proveniente do Rio de Janeiro.
Portadora de cirrose hepática por vírus C, comprovado por sorologia e biópsia hepática em internação anterior. Admitida com episódio de encefalopatia hepática de grau 1, que melhorou rapidamente com tratamento. Apresentava história de dispnéia aos pequenos esforços e ao ortostatismo, que melhorava com decúbito dorsal, de 24 meses de evolução. Negava tosse, febre, chieira torácica, ortopnéia ou dispnéia paroxística noturna. Relatava uso crônico de espironolactona (100mg/dia), lactulose (30ml/dia) e mononitrato – 5 de isossorbida (40mg/dia). Esta última medicação para prevenção de sangramento por varizes esofágicas em paciente intolerante aos betabloqueadores.
Ao exame: afebril, lúcida, mas, com períodos de desorientação, eupnéica, ictérica (+/4), acianótica, “Spiders” em tronco e eritema palmar. “Flapping” presente. Sem evidência de hipocratismo digital. P = 120 x 70mmHg; FC = 80 bpm; FR = 14 irpm (em decúbito); rítmo cardíaco, regular em dois tempos, sem sopros; murmúrio vesicular fisiológico sem ruídos adventícios; abdome normotenso, indolor à palpação; baço a 4cm da reborda costal esquerda; ruídos hidroaéreos presentes. Sem edema de membros inferiores. Exames complementares: leucócitos = 3.000/ml; Hb = 11g/dl; plaquetas = 59.000/ml; albumina = 2,4g/dl; globulinas = 4g/dl; bilirrubina direta = 0,9mg/dl; bilirrubina indireta = 2,5mg/dl; bilirrubina total = 3,4mg/dl; TGO = 35 UI/l; TGP = 40 UI/l; atividade de protrombina = 39,6%; fosfatase alcalina = 149 UI/l; uréia = 37mg/dl; creatinina = 0,8mg/dl; Na = 138 mEq/dl; K = 3,5 mEq/dl; glicemia = 81mg/dl; gasometrias: decúbito: PO2 = 72,1mmHg; saturação O2 = 96,2%. Ortostatismo: PO2 = 71,9mmHg; saturação O2 = 94,8%. Gradiente alvéolo-arterial O2 = 42mmHg (normal corrigido pela idade = 19,2mmHg); Rx tórax = normal. Endoscopia digestiva alta: varizes esofágicas de médio calibre, gastrite enantematosa leve do antro. Ecodopplercardiograma transtorácico = função sistólica do VE preservada; ausência de “shunt” intracardíaco. Ecodopplercardiograma transtorácio com “bolhas”: evidência de “shunt” intrapulmonar.
A síndrome hepatopulmonar (SHP) ocorre quando pacientes, com doença hepática e/ou hipertensão portal, desenvolvem dilatações vasculares intrapulmonares, resultando em concentrações arteriais de oxigênio abaixo da normalidade.( 15 ) Esta síndrome faz parte do espectro de alterações encontradas nos vasos sanguíneos pulmonares nas fases avançadas das doenças hepáticas: ( 8 )
A SHP caracteriza-se por uma tríade de: ( 1 )
Em material de autópsia de pacientes com a SHP, a injeção vascular pulmonar de corante angiográfico sob pressão (100cmH2O) documentou a existência de dilatações pré-capilares arteriais e comunicações arteriovenosas. ( 11 ) Esta vasculopatia ocorre, predominantemente, nos terços inferiores dos pulmões e pleura. ( 1 )
A diminuição na oxigenação arterial é característica da SHP. A hipoxemia leve é observada freqüentemente na doença hepática crônica; ocorre em cerca de 30% dos pacientes e é de etiologia multifatorial. ( 15 ) Ao contrário, a hipoxemia severa (PaO2 < 50mmHg) não é comum, sugerindo, na ausência de doenças cardiopulmonares concomitantes, a possibilidade da SHP. ( 8 , 15 ) Esta síndrome, cada vez mais diagnosticada em pacientes com doença hepática crônica, tem prevalência entre 4-17%. ( 2 , 4 , 20 )
Acredita-se que três mecanismos contribuam para a dessaturação da oxigenação arterial nos pacientes com a SHP: ( 1 , 5 )
Circulação hiperdinâmica, com débito cardíaco elevado e diminuição da resistência vascular sistêmica, surge em todas as formas de insuficiência hepatocelular. ( 5 ) À medida em que a microcirculação pulmonar dilata, ocorre falência da vasoconstrição pulmonar hipoxêmica, resultando em desequilíbrio na ventilação-perfusão (perfusão > ventilação) e piora nas trocas gasosas. ( 1 , 5 ) A dilatação acentuada dos vasos pulmonares na SHP, aumenta de modo significativo a distância para a difusão do O2 do gás alveolar para o centro do capilar (“diffusion-perfusion limitation”). ( 1 , 5 , 8 ) A hipoxemia, resultante desse fenômeno, melhora com a administração de oxigênio a 100%. Os estudos - que utilizaram a técnica de eliminação de múltiplos gases inertes (MIGET – “multiple inert gases elimination technique”) para avaliar os mecanismos de piora nas trocas gasosas em cirróticos - encontraram como anormalidade predominante em pacientes com hipoxemia leve um desequilíbrio na ventilação-perfusão. ( 1 , 5 , 8 , 15 ) Naqueles com hipoxemia grave, a limitação na difusão-perfusão passou também a contribuir de modo significante. ( 1 , 5 , 8 , 15 ) Em alguns pacientes com doença hepática avançada, a hipoxemia não responde a utilização de oxigênio a 100%, indicando a presença de importantes e extensas vasodilatações vasculares ou comunicações arteriovenosas verdadeiras (“shunts” anatômicos). ( 11 )
O mecanismo da vasodilatação intrapulmonar na SHP não está ainda elucidado. Uma alteração no metabolismo ou “clearence” de substâncias vasoativas, devido à disfunção hepática ou hipertensão portal, pode causar desequilíbrio entre os vasoconstritores e vasodilatadores pulmonares, com predomínio desses últimos. ( 8 ) Dentre os potenciais vasodilatadores estão incluídos: óxido nítrico, fator natriurético atrial, fator ativador plaquetário, peptídeo intestinal vasoativo, estrogênios, glucagon e prostaglandinas. ( 1 , 8 ) A diminuição da produção ou inibição dos vasoconstritores como a endotelina pode também contribuir para o relaxamento do tônus dos vasos dentro da microcirculação pulmonar. ( 1 )
Até o momento, cirrose de diversas etiologias é a responsável por mais de 90% dos casos descritos da SHP. ( 1 , 12 ) Esta síndrome também foi associada à hipertensão portal não cirrótica; isto sugere que a hipertensão porta possa ser um fator determinante na SHP. ( 6 ) Os sinais e sintomas de doença hepática são a forma mais comum de apresentação dos pacientes que, posteriormente, serão diagnosticados como portadores dessa síndrome. ( 11 ) Em estudo na Clínica Mayo, 18% dos pacientes com a SHP queixaram-se inicialmente de dispnéia e a doença hepática foi diagnosticada nas avaliações subseqüentes. ( 12 )
Naqueles com hipoxemia importante os achados mais expressivos do exame físico são baqueteamento digital e cianose. ( 11 ) O sintoma pulmonar mais comum na SHP é a dispnéia, que pode piorar com o exercício ou quando o paciente assume a posição em pé (platipnéia). ( 10 , 11 , 18 )
Krowka e col. observaram ortodeóxia (dessaturação da oxigenação arterial maior que 10% na posição em pé) em 88% dos pacientes com a SHP. ( 12 ) A presença de ortodeóxia e platipnéia nesses pacientes está relacionada ao fato de que, na posição em pé, existe aumento do fluxo sanguíneo nas bases pulmonares, onde a vasodilatação intrapulmonar é mais proeminente, acentuando-se as anormalidades nas trocas gasosas. ( 1 , 12 ) A duração média dos sintomas respiratórios (principalmente dispnéia) até o diagnóstico da SHP foi de 4,8 anos. ( 12 )
Quando os achados clínicos sugerem a possibilidade da SHP, a avaliação diagnóstica inicial inclui a medida dos gases arteriais. ( 1 ) Como a hiperventilação e alcalose respiratória são comuns em cirróticos, a simples determinação da PaO2 pode subestimar o verdadeiro grau do déficit na oxigenação arterial e deve ser acompanhado pelo cálculo do gradiente alvéolo-arterial de oxigênio. ( 11 ) Um valor anormal corrigido pela idade (normal = < 20mmHg; correção pela idade = 2.5+ idade : 4) indica uma anormalidade na troca gasosa e, portanto, na oxigenação tecidual. ( 1 ) A posição em pé acentua a dessaturação da oxigenação arterial e uma amostra de sangue deve ser colhida com o paciente ereto. Anormalidades na gasometria arterial impõem a solicitação de uma radiografia do tórax e provas funcionais respiratórias, para excluir outras causas de disfunção pulmonar. A presença de dilatação vascular intrapulmonar pode ser confirmada utilizando-se um dos sequintes métodos de imagem: ecocardiografia bidimensional com contraste endovenoso, cintilografia pulmonar com macroagregados de albumina marcados com tecnécio–99m e arteriografia pulmonar. ( 8 , 11 , 15 )
O ecocardiograma com contraste (microbolhas de soro fisiológico) é o procedimento mais sensível e também o mais utilizado para detectar vasodilatação intrapulmonar em pacientes com suspeita de SHP.2
Uma cintilografia, com macroagregados de albumina positiva para dilatações vasculares intrapulmonares em cirróticos, é específica para a presença da SHP moderada a grave. ( 4 ) Este método é particularmente utilizado para avaliar a contribuição da SHP na hipoxemia de cirróticos com doença pulmonar intrínseca.
A arteriografia é o procedimento diagnóstico mais invasivo para detectar vasodilatações intrapulmonares e, como pode não revelar qualquer anormalidade, apesar da presença de hipoxemia significativa, não é um teste útil para o rastreamento da SHP. ( 1 ) Dois tipos de achados angiográficos foram descritos. ( 8 )
Várias drogas foram utilizadas com sucesso limitado na SHP. O objetivo da terapia farmacológica é aumentar a vasoconstrição (ex.: almitrina) ou inibir a vasodilatação (ex.: azul de metileno) do leito vascular pulmonar. ( 1 , 11 ) Abrams e col. utilizaram cápsulas de alho (mecanismo desconhecido) em cinco pacientes com SHP e verificaram uma melhora na oxigenação e na queixa subjetiva de dispnéia em 80%. ( 3 )
Recentemente, o transplante hepático surgiu como um tratamento útil para a SHP, baseado em publicações que demonstraram reversão total ou melhora na oxigenação arterial no pós-operatório. ( 1 , 13 , 14 ) O período de tempo necessário para a resolução das anormalidades nas trocas gasosas é variável (2 a 65 semanas). ( 1 , 14 ) Nem o grau de hipoxemia arterial pré-transplante e nem os achados angiográficos (tipo I ou II) predizem a evolução e resolução da SHP após a cirurgia. ( 1 ) Krowka e col. recomendam que pacientes com hipoxemia severa (PaO2 < 50mmHg) e doença hepática avançada sejam avaliados para a realização do transplante hepático. ( 13 )
O papel do “shunt” portossistêmico intra-hepático transjugular (TIPS) como opção terapêutica na SHP não está estabelecido. ( 17 )
A história natural da SHP ainda não é bem conhecida em razão da falta de dados prospectivos. Em estudo retrospectivo, Krowka e col. observaram uma mortalidade de 41% em 22 pacientes, 2 anos e meio após o início da dispnéia. ( 12 ) A maioria dos pacientes não morreu devido a complicações pulmonares e sim sangramento digestivo, sepse, entre outras causas. ( 12 ) Nessa série, 7 pacientes apresentaram piora progressiva na oxigenação arterial num período de 4 anos. ( 12 )
Já Jeffrey e col. verificaram rápida diminuição da PaO2 em pacientes com SHP, ocorrendo óbito em dois meses. ( 9 )
Estes trabalhos sugerem uma mortalidade significativa e também alteração progressiva que às vezes acontece de forma célere na troca gasosa em pacientes com a SHP.
Por outro lado, relatos de casos mostraram que a SHP pode melhorar espontaneamente ( 19 ) ou com a resolução da doença hepática ( 5 ). Estudos prospectivos são necessários em pacientes com a SHP para elucidar a história natural dessa síndrome.
Design e Desenvolvimento: Equipe de Desenvolvimento Web do C.P.D.