Você está em: Home >>>> Profissionais de Saúde >>>> Revista Médica >>>> Número 36 - Volume 1 >>>> Trabalho Original - PREVALÊNCIA DE INFECÇÃO PELOS VÍRUS B E C DA HEPATITE (HBV e HCV) EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA (HIV)
Gláucia G. Souza Ferraz
Jacqueline A. de Menezes
Jorge Luiz D. Gazineo
Luiz Fernando C. Passoni
Mônica P. M. Lessa
Paulo de Tarso A. Pinto
Renato Pereira Lima
A soro-prevalência de HBV e HCV foi analisada, a partir de dados de prontuário, em 238 pacientes HIV positivo em acompanhamento no Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP) do Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (HSE), dos quais 211 tinham disponíveis os resultados sorológicos para hepatite B e C. Entre estes a mediana de idade foi de 40 anos; 66,8% eram do sexo masculino. A principal categoria de exposição ao HIV foi a sexual (83,9% dos casos). A transfusão de sangue foi a via de aquisição em 7,5% dos casos e o uso de drogas injetáveis ilícitas (UDI) em 2,3%. No total, 109 pacientes (51,5 %) tinham algum marcador de infecção pelo HBV. No momento da sorologia, 3,3% dos pacientes (7/211) eram HBs Ag positivo. Seis tinham infecção crônica e um tinha antiHBc IgM. Sessenta e nove pacientes (32,7% de 211) tinham evidência de infecção passada pelo HBV (antiHBs + antiHBc). Os demais 22 (10%) tinham apenas antiHBc. Interessante notar que outros 11 pacientes (5,2% do total) apresentavam imunidade adquirida por vacina. O antiHCV estava presente em 8,9% dos pacientes (18/202). Um paciente tinha co-infecção pelos vírus B e C. Destes 18 pacientes, seis (33,3%) eram usuários de drogas ilícitas injetáveis e quatro (22,2%) eram hemotransfundidos. Em contraste, dos 109 pacientes com marcadores de infecção pelo HBV, apenas cinco (4,5%) eram UDI e seis (5,5%) eram hemotransfundidos.
PALAVRAS-CHAVE : o-infecção, HIV, hepatite B, hepatite C.
We performed a retrospective analysis of 238 charts from HIV+ outpatients attending the Infectious Diseases clinic of Hospital dos Servidores do Estado (Rio de Janeiro) to assess the prevalence of Hepatitis B and C co-infections. Serological markers (results) were available for 211 patients. Of these 66.8% were male, 83.9% had acquired HIV infection by sexual transmission, 7.5% were blood transfusion recipients and 2.3% were intravenous drug users. Median age was 40. One hundred and nine (51.5%) had evidence of previous exposure to hepatitis B and/or hepatitis C virus. Seventy nine (32.7%) had reactive anti-HBs and anti-HBc; seven (3.3%) had HBsAg, one of whom had evidence of recent infection (reactive anti-HBc IgM); 22 (10%) had only anti-HBc; 11 (5.2%) had received immunization and showed only anti-HBs. Eighteen patients (8.9%) were anti-HCV positive (one was co-infected with hepatitis B). Of these 18 patients, six (33.3%) were intravenous drug users and four (22.2%) blood transfusion recipients. Among 109 patients with markers of infection HBV, only 5 (4.5%) were IV drug users and 6 (5.5%) were recipients of blood transfusions.
KEYWORDS : co-infection, HIV, hepatittis B, hepatittis C.
O advento da terapia antiretroviral altamente ativa, conhecida como HAART (da sigla anglo-saxônica highly active antiretroviral therapy), aumentou a expectativa de vida dos pacientes HIV positivo, e com ela também a incidência de algumas doenças oportunísticas, sendo o fígado o órgão mais comumente acometido. Um estudo europeu mostrou que a doença hepática crônica, especialmente aquela causada por vírus hepatotrópicos, está entre as cinco primeiras causas de óbito entre pacientes HIV positivo, usuários de drogas injetáveis, admitidos nos últimos quatro a cinco anos [33]. Segundo Poles e Dieterich [22], metade de todos pacientes infectados pelo HIV são co-infectados com os vírus da hepatite B (HBV) ou C (HCV), o que tem causado um impacto na qualidade de vida, na sobrevida e nos custos com a saúde desses pacientes.
1.1 - HEPATITE B
Entre os pacientes infectados pelo HIV por exposição sexual (homo ou heterossexual), uso de drogas ilícitas endovenosas, ou recepção de hemoderivados no passado, 95% têm evidência de infecção passada pelo HBV (presença de antiHBs ou antiHBc no soro) e cerca de 10 a 15% são portadores crônicos (HbsAg positivo) [12,18].Clinicamente, a infecção pelo HBV pode levar ao estado de portador assintomático, causar hepatite crônica, cirrose hepática ou até carcinoma hepatocelular. O dano hepático associado ao HBV, e o posterior clearance viral, são mediados por imunidade celular. Uma vez que os linfócitos T CD4+ auxiliam esta imunidade, a depressão da função e do número destas células, modifica a história natural da hepatite B. Assim, o risco de infecção crônica pelo HBV é inversamente proporcional ao número de células T CD4+. Logo, podemos correlacionar a intensidade do dano hepatocelular com o vigor da resposta imunológica; quanto mais adequada ela for, maior será a eliminação viral e a injúria hepática (maiores valores de transaminases e maior dano histológico). É o que se observa no paciente imunocompetente. Já nos pacientes com HIV positivo, encontramos uma grande replicação viral do HBV, com altos níveis de HBV DNA, menores valores de transaminases e menor dano histológico. Entretanto, pela maior tendência a cronicidade, há um risco maior de evolução para cirrose e hepatocarcinoma nesses pacientes. Além disso, é importante mencionar que pode haver uma reativação da infecção pelo HBV em indivíduos que já haviam alcançado remissão da mesma (HBsAg negativo e antiHBs positivo), sobretudo após início do esquema HAART [20].
1.2 - HEPATITE C
O HCV foi reconhecido em 1989 e hoje se sabe que a hepatite C é uma das causas mais importantes de doença hepática crônica, que afeta a cerca de 170 milhões de indivíduos em todo mundo [17], sendo cerca de 4 milhões nos Estados Unidos (1,4% da população) e 2,4 milhões no Brasil. Em alguns continentes como a África e a Ásia, a prevalência do HCV na população geral pode variar de 4 a 6%[26]. A prevalência do HCV é particularmente alta em pessoas infectadas pelo HIV, chegando a acometer 30% ou mais destes pacientes [25,36]. Tal achado pode ser devido à da existência de fatores de risco semelhantes para ambos os vírus, principalmente os que envolvem a transmissão por rota parenteral. Quando distribuímos os pacientes por algumas categorias de exposição, a prevalência pode aumentar ainda mais: acima de 80% em usuários de drogas ilícitas injetáveis e de 60 a 90% em hemofílicos [6,25,36]. A transmissão sexual do HCV é controversa, mas se sabe que a prevalência desta infecção é maior em homossexuais masculinos infectados ou não pelo HIV [21]. Tanto a transmissão sexual como a vertical, do HCV, são mais freqüentes em pacientes com HIV positivo. A transmissão perinatal do HCV em mães HIV negativo ocorre em 5 a 6% dos casos [3]. Já nas mães HIV positivo o risco de transmissão do HCV pode variar de 11 a 25% [26].
A prevalência real do HCV entre os infectados pelo HIV nem sempre é facilmente determinada, pois existem flutuações no status sorológico, e mesmo soro-reversão, que é definida como a passagem do status positivo para negativo do anticorpo anti-HCV. Nestes casos, a sorologia anti-HCV (ensaio imunoenzimático) deve ser solicitada mais de uma vez ou deve-se lançar mão de técnicas mais sensíveis como o PCR (Reação em Cadeia da Polimerase) para detecção do HCV-RNA, quando houver alteração de transaminases e fatores de risco para o HCV [31]. A soro-reversão para o HCV é, duas vezes e meia, mais freqüente entre os co-infectados pelo HIV, quando comparados aos pacientes não infectados pelo HIV [4].
Em geral, a hepatite C aguda é pouco freqüente ou sub-clínica; 75 a 85% dos pacientes se tornam portadores crônicos. Embora a maioria tenha níveis de transaminases elevados, 25 a 30 % destes pacientes mostram transaminases normais [30]. Diante disso, deve se estar atento para o risco de progressão para doença hepática terminal, que não guarda relação com os níveis de transaminases ou com a carga viral do HCV [14,15]. O risco aumenta com o tempo de infecção, o consumo de álcool, a co-infecção por outros vírus e com outras causas de imunossupressão [1,5,8,23]. Em 1999, Justice e cols. [16], estudaram mais de 4000 pacientes infectados pelo HIV e evidenciaram que aqueles com contagem de células T CD4+ acima de 200/mm3, possuem a mesma taxa de sobrevida que aqueles infectados apenas pelo HCV. Além disso, foi visto neste estudo que a principal causa dos óbitos, não relacionada à SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), é a doença hepática.
Existem importantes similaridades entre o HIV e o HCV. Os fatores de risco para a transmissão são semelhantes. Os vírus são constituídos de RNA nos dois casos. Em ambos os casos, resultam em infecção crônica sub-clínica, invadem o sistema imune do hospedeiro e possuem enorme heterogeneidade dos seus genomas (quasispecies) [9,32}. Podem apresentar resistência natural à terapêutica de erradicação viral e possuem altas taxas de replicação viral, com produção diária de bilhões de cópias de HIV e trilhões de cópias de HCV.
A infecção pelo HIV altera a história natural da infecção pelo HCV, tornando esta última mais agressiva do que o habitual. Por outro lado, vários estudos sugerem que o HCV pouco altera o curso do HIV, embora alguns autores demonstrem que na presença do genótipo tipo 1 do HCV haveria uma progressão, mais rápida, para a SIDA e para o óbito. [2,13,28].
Pacientes co-infectados apresentam injúria hepática rapidamente progressiva, além de apresentarem inflamação moderada a severa, progressão mais rápida para fibrose, níveis mais elevados de transaminases, cirrose [29] e descompensação hepática mais freqüentes. Soto e cols.(1997) [35], demonstraram, num estudo de 547 pacientes com infecção pelo HCV adquirido por via parenteral, que o tempo de progressão para cirrose foi de 6,9 anos em pacientes co-infectados por HIV, versus 23,2 anos em pacientes HIV negativo.
Soriano e cols.(2000) [34] demonstraram, em um estudo de coorte com mais de 4000 pacientes HIV positivo, que a infecção pelo HCV está associada a um risco de óbito 50% maior depois de dois anos e meio.
Vários estudos mostraram que os pacientes HIV positivo apresentaram maiores níveis de HCV-RNA sérico. Ghany e cols. (1996) [11] e Soto e cols. (1997) [27] mostraram uma correlação inversa entre os níveis de HCV-RNA e a contagem de células T CD4+.
Esses pacientes apresentam, ainda, alto risco de hepatite fulminante com a reconstituição imune que ocorre após o início da terapia anti-retroviral. Alguns estudos, mas não todos, mostraram que os níveis de transaminases séricas aumentam quando o paciente inicia o esquema HAART [7,10,24,27,37], com o aumento da inflamação lobular e da necrose quando comparados à histologia inicial. Essas alterações seriam, entretanto, reversíveis com a continuação do esquema HAART.
Devido à maior freqüência de co-infecções pelos vírus da imunodeficiência humana e das hepatites B e C, e à maior freqüência de doença hepática terminal nesses pacientes, as hepatites são agora consideradas doenças oportunísticas em pessoas infectadas pelo HIV. Desta forma, resolvemos estudar a prevalência destas co-infecções nos pacientes acompanhados no ambulatório de AIDS do serviço de DIP do HSE, com o intuito de identificá-las e de intervir no melhor momento, para podermos melhorar o prognóstico e qualidade de vida desses pacientes.
Realizado um estudo retrospectivo, do tipo série de casos em que a coleta de dados foi realizada durante o período de abril a novembro de 2001. Foram avaliados 238 prontuários de pacientes com infecção pelo HIV em acompanhamento no Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP) do HSE (Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro), dos quais 211 tinham disponíveis resultados sorológicos para hepatites B e C. Com os dados obtidos dos prontuários, foi preenchido um formulário e construído um banco de dados, a partir do qual, foram extraídos os resultados. No formulário constavam as seguintes variáveis: idade, sexo, modo provável de exposição ao HIV, contagem de células T CD4+ e a data de realização deste exame, classificação de acordo com os CDC (Centers for Disease Control) e resultados dos testes sorológicos para HBV e HCV. Os marcadores virológicos avaliados pelo método de ensaio imunoenzimático (ELISA) foram: HBsAg, antiHBs, antiHBc, antiHBc IgM, HbeAg, antiHBe e antiHCV. Todos os resultados reativos foram repetidos.
Dos 211 pacientes, 141 (66,8%) eram do sexo masculino e 70 (33,2%) do sexo feminino. Em relação às categorias de exposição ao HIV, 100 (47,4%) eram homens homo/bissexuais, 77 (36,5%) mulheres e homens heterossexuais, 13 (6,3%) usuários de drogas ilícitas injetáveis, 16 (7,5%) tinham recebido hemotransfusão e 5 (2,3%) não tinham categoria definida. A mediana de idade foi de 40 anos. A contagem mediana de células T CD4+ foi de 404/mm3; 39% dos pacientes tinham a SIDA definida.
Cento e nove dos 211 pacientes (51,6%) tinham algum marcador de infecção pelo HBV. Destes, 59 (54,1%) eram homo/bissexuais masculinos, 39 (35,8%) eram heterossexuais, 5 (4,6%) eram usuários de drogas ilícitas injetáveis e 6 (5,5%) eram receptores de transfusão sangüínea. No momento da sorologia, 3,3% dos pacientes (7/211) eram HbsAg positivo, sendo que 6 tinham infecção crônica e 1 tinha antiHBc IgM. Sessenta e nove pacientes tinham evidência de infecção pelo HBV (antiHBs + antiHBc), 22 tinham apenas antiHBc e 11 apenas antiHBs.
A prevalência do antiHCV foi de 8,9% (18 de 202 pacientes) pois 9 dos 211 não tinham antiHCV disponível. Dos positivos, 4 (22,2%) eram homo/bissexuais masculinos, 4 (22,2)% eram heterossexuais, 6 (33,3%) eram usuários de drogas ilícitas injetáveis e 4 (22,2%) eram receptores de transfusão sangüínea (Figura 1). Um paciente era co-infectado com os vírus B e C. As tabelas 1 e 2 mostram os resultados das sorologias para hepatites B e C em pacientes usuários de drogas ilícitas injetáveis e em pacientes hemotransfundidos. É importante notar que nenhum paciente usuário de drogas ilícitas injetáveis era HBsAg positivo, salvo o paciente co-infectado pelos vírus B e C .
Figura 1 Distribuição de 18 pacientes com infecção pelo HIV e antiHCV positivo, segundo a categoria de exposição ao HIV
Figura 2 Distribuição dos principais marcadores de Hepatites B e C em 126 pacientes com infecção pelo HIV
| HCV* | 6 pacientes | 46% |
|---|---|---|
| Anti Bc+a | 4 pacientes | 31% |
| Anti HBc | 1 paciente | 8% |
| Nenhum | nenhum | 15% |
| * Inclui 1 HBsAg | ||
| HCV | 25% |
|---|---|
| AntiHBc | 19% |
| AntiHBc+antiHBs | 19% |
| AntiHBsAg | 6% |
| Nenhum | 31% |
Há uma alta prevalência de marcadores para hepatite B na população estudada (51,5%), a maioria em pacientes homo/bissexuais. A literatura refere à de 10 a 15% de infecção crônica pelo HBV em pacientes HIV positivo [12,18,19,22,]; em nosso estudo, 6 pacientes (5,5%) tinham infecção crônica por esse vírus. Mais da metade (63,5%) apresentava evidência de imunidade adquirida por infecção passada, e 10% imunidade adquirida por vacina. Uma quantidade considerável de pacientes (20%) tinha apenas antiHBc isolado. Devemos ficar atentos a este fato, pois, segundo a literatura, a maioria desses pacientes apresenta HBV DNA positivo pelo teste de PCR, e cerca de 36% destes pacientes têm ALT (alanina transferase) alterada. Se isto se verificasse nos pacientes do estudo, a freqüência dos que têm infecção crônica poderia subir para cerca de 30%.
Em relação à hepatite C, evidenciamos alta prevalência entre os usuários de drogas ilícitas injetáveis (46%) e secundariamente, entre os hemotransfundidos (25%), como podemos visualizar nas tabelas 1 e 2. A prevalência não foi significativa entre homo/bissexuais e heterossexuais, o que mostra que a transmissão do HCV por via sangüínea é muito mais importante.
Existem vários problemas a serem enfrentados no que diz respeito aos pacientes co-infectados por esses vírus: aumento da transmissão sexual e vertical do HCV, aumento da carga viral do HCV no plasma e tecidos de co-infectados, aceleração da história natural da hepatite, dano hepático mais grave, desenvolvimento de quasispecies, maior risco de hepatoxicidade com o esquema HAART e pior resposta ao tratamento. Por isso, muitos têm relutado em tratar esses pacientes ou por receio ou pelas limitações no manejo desses doentes. No entanto, devemos superar esses desafios, e principalmente, intervir o mais precoce possível, fazendo a testagem para os marcadores de hepatites virais de todos os pacientes HIV positivo e vacinando aqueles sem evidência de contato prévio com o HBV e o HAV (vírus da hepatite A). Precisamos estar atentos a essas infecções e não deixar que o melhor momento para o tratamento nos escape, pois desta forma diminuímos as complicações, aumentamos a sobrevida e acima de tudo, melhoramos a qualidade de vida dos pacientes.
A preocupação com estes fatos levou o Serviço de DIP do HSE a criar um ambulatório específico para atender a pacientes co-infectados, em conjunto com o Setor de Hepatologia da Seção de Gastroenterologia do Serviço de Clínica Médica do HSE.
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